quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A PSIQUIATRIA X "MAIS VOCÊ"

Breve comentário
 O diagnóstico e o tratamento de TDAH sofrem dos mesmos problemas que  acabaram por solapar as bases racionais do  controle de peso: excesso de diagnóstico e viés de prescrição. Indústria farmacêutica voraz e médicos lenientes. (Abnoel Souza).


Carta do Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria ao Editor do "Mais Você"/ TV Globo

Senhor editor,
O programa Mais Você desta segunda-feira (28/11) trouxe duas matérias e uma entrevista com o médico Eduardo Mutarelli. Surpreendeu-nos negativamente, assim como toda a comunidade médica que representamos, a discussão que colocou em dúvida a existência do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Tendo em vista a condução equivocada do programa, fazemos as seguintes considerações, já ratificadas por psiquiatras de todo o país:
1. O que hoje chamamos de TDAH é descrito por médicos desde o século XVIII (Alexander Crichton, em 1798), muito antes de existir qualquer tratamento medicamentoso. No inicio do século XX, um artigo científico publicado numa das mais respeitadas revistas médicas até hoje, The Lancet, escrita por George Still (1902), descreve a TDAH. Essa descrição é quase idêntica a encontrada nos atuais manuais de diagnóstico, como o DSM-IV da Associação Americana de Psiquiatria.
2. Os sintomas que compõem o TDAH são observados em diferentes culturas: no Brasil, nos EUA, na Índia, na China, na Nova Zelândia, no Canadá, em Israel, na Inglaterra, na África do Sul, no Irã etc.
3. O TDAH é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como transtorno mental e está listado na Classificação Internacional de Doenças (CID). E, como afirmou uma das matérias veiculadas em seu programa, segundo a OMS, 4% dos adultos e 8% das crianças e adolescentes de todo o mundo sofrem de TDAH.
4. Mais de duzentos artigos científicos já foram publicados demonstrando alterações no funcionamento cerebral de portadores de TDAH. Ressalte-se que os achados mais recentes e contundentes são oriundos de centros de pesquisa como o National Institute of Mental Health dos EUA.
5. Todo e qualquer tipo de medicação, principalmente os dispensados por prescrição médica, possuem contraindicação. Entretanto, são inegáveis os benefícios levados aos pacientes que realmente necessitam dela.
Diante do exposto, façamos uma reflexão. Se fosse uma doença “inventada” ou “mera consequência da vida moderna”, seria possível o TDAH atravessar mais de um século com a descrição dos mesmos sintomas? Se o TDAH fosse apenas “um jeito diferente de ser” e não um transtorno mental, por que os portadores, segundo pesquisas científicas, têm maior taxa de abandono escolar, reprovação, desemprego, divórcio e acidentes automobilísticos? Por que eles têm maior incidência de depressão, ansiedade e dependência de drogas? Se fosse tão somente um comportamento secundário ao modo como as crianças são educadas, ou ao seu meio sociocultural, como é possível que a descrição seja praticamente a mesma em regiões tão diferentes?
O fato inquestionável, senhor editor, é que o TDAH é um dos transtornos mais bem estudados da medicina e com mais evidências científicas que a maioria dos demais transtornos mentais.
Os pacientes e seus familiares merecem mais cuidado e atenção. É lamentável que um repórter se passe por um doente mental para escrever uma matéria e, ao final de uma semana sustentada por mentiras, se coloque na posição de aconselhar a quem quer que seja.
Imagine a gravidade da situação se esses pacientes, desinformados por essa matéria, param a medicação, tenham recaídas e venham a cometer atos graves. Quem será responsabilizado?
Ficamos imaginando os promotores da infância e adolescência e os conselheiros tutelares agindo em defesa desses pacientes.
Se houve, lamentamos os diagnósticos equivocados e o excesso de medicação informados por seu programa. Por outro lado, repudiamos toda e qualquer tentativa de se denegrir a atividade desempenhada pelo psiquiatra. Maus profissionais há em todos os lugares, inclusive entre os que, em vez de informar, prestam o curioso serviço de desinformar a população brasileira.
Com o intuito de colaborar e em função da importância do assunto, gostaríamos de ter resposta equivalente ao tempo que foi dado às discussões no programa desta segunda-feira. Sabemos que essa produção se pauta pelo interesse do cidadão e não se furtará a melhor esclarecer um assunto que é importante para milhares de pacientes, de norte a sul do país. Para tanto, colocamo-nos à disposição, assim como toda a grade de associados da ABP, para levar os esclarecimentos pertinentes. Lembramos também ser necessário ouvir as associações de familiares e pacientes com TDAH e mostrar a realidade vivenciada por eles.
Aproveitamos para convidar o senhor editor e toda a equipe do Mais Você para se engajarem na luta contra o preconceito que há em relação ao doente mental e ao psiquiatra. Pensando em como acabar com o estigma que paciente e médico carregam, a Associação Brasileira de Psiquiatria lançou a campanha “A Sociedade contra o Preconceito”, no último Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no início de novembro. A campanha ganhou a adesão das atrizes Cássia Kiss Magro e Luíza Tomé, do locutor esportivo Luciano do Valle e dos escritores Ferreira Gullar e Ruy Castro. Pessoas que entendem a perversidade que é estigmatizar o doente mental porque passaram por isso, pessoalmente ou com familiares próximos.
Contamos com a sensibilidade do senhor editor e dos colaboradores do Mais Você para contribuir com o fim do preconceito e não alimentá-lo ainda mais.
Grato

Antônio Geraldo da Silva.:

Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP.

sábado, 19 de novembro de 2011

"UM CERTO DOUTOR RODRIGO"




Autora:  Terezinha Rocha de Almeida


Para Rodrigo Coutinho de Almeida, uma homenagem de sua tia-madrinha



Difícil escavar feridas, falar de nossos antepassados carregando seus fardos, falar de coisas que para muitos soam como vergonha e pequenez, mesmo diante de biografias brilhantes como a de Saramago tendo seu primeiro emprego como Serralheiro, o Presidente Lula como Torneiro Mecânico e para os que gostam de luxo e realeza, Channel como uma criança miserável e a nova "Princesa" da Inglaterra neta de um operário.
Eu não poderia homenagear apenas meu genial sobrinho Rodrigo sem evocar primeiro seus avós e bisavós, homens e mulheres guerreiros, muitas vezes excluídos, levando e tocando a vida como as formigas obreiras, quando sonhavam como cigarras, como pássaros canoros que almejavam voar, como vaga-lumes que nas noites de trevas das ladeiras de pedras e dos sertões a ermo, não ousavam ser estrelas.
Seu Luiz Gonçalves e dona Benedita Coutinho costumavam nos dias escaldantes de sol e nas noites tenebrosas de ventos e tempestades carregarem ao braço seu guarda-chuva, o "babadinho" e sua florida sombrinha, marcas registradas dos operários da fábrica de tecidos Carmem, instrumento inseparável para enfrentarem o sol e as tormentas que nem sempre mandavam recados.
Meu pai sonhara ser Advogado para defender os pobres e desvalidos, os sonhos de dona Biu eu não os conheci, deles eu conheci apenas a luta tenaz pela sobrevivência e educação dos filhos, a juventude que se foi triturada pelo trabalho e as primaveras que se trajaram em capote de chumbo, envoltos nas brumas do inverno.
Nessa doação pelo crescimento dos filhos foram também a juventude de minha mãe, Nadyr Peixoto e de seu José Coutinho que de origens mais abastadas não sofreram as agruras dos avôs operários.
A vitória de Rodrigo é também de seus antepassados, de seus pais, muito dele e um pouco nossa.
A primeira vez que vi meu sobrinho, ainda bebê, eu ainda solteira o escolhi para "meu filhote". Tinha os cabelos em penugem dourada, enormes olhos esverdeados que lembravam um certo quê de melancolia semelhante ao de sua bisavó, dona Júlia. Ele herdaria também de sua bisavó a asma brônquica que o acompanharia durante toda sua infância.
Em minha maternagem junto à minha irmã caçula Ângela e meu cunhado Emanuel estivemos com ele não apenas no sofrimento, porém nas festas e celebrações de sua meninice. Esmerava-me em copiar  meu pai, dando-lhe os mimos sempre superiores aos que eu havia recebido nas festas de carnaval, na páscoa, nas festas juninas, nos brinquedos e roupas da moda e nas festas natalinas, onde, apesar de rompida com Papai Noel desde a infância resolvi presentear-lhe com a fantasia, onde o "velhinho" brasileiro trocou a rena por cavalos, o trenó por uma charrete, mesmo esbelto e sem barriga encheu de alegria e magia a meninada.
Mais tarde conviveríamos mais um ano no seu pré-vestibular. Época em que não dispunha de tempo para colaborar com sua preparação para os exames, porém mesmo assim procurei dar para ele o que mais gostava de fazer: redigir.
Durante um ano, todas as semanas eu alternava um texto de autores clássicos como Graciliano Ramos, Rubem Braga, Machado de Assis, Rachel de Queiroz, entre outros e artigos de revistas ou jornais de boa qualificação, exigindo uma redação baseada no tema, tarefa que cumpria religiosamente, com excelente aproveitamento, tanto o foi que obteve uma  de suas melhores notas em redação, quando de sua aprovação na Federal do Mato Grosso.
Hoje meu sobrinho é um jovem e laureado cientista, porém ele tem muito mais que a ciência, o conhecimento, a cultura e como diria Sêneca, ele tem o “saber ou sabedoria", sendo isso que o faz um ser privilegiado, pois são atributos dos sábios, sendo assim o Doutor Rodrigo não é apenas um homem da academia, mas antes de tudo um ser humano iluminado.

Maceió - AL. 13-11-2011

A NOITE DOS HOMENS DA CANA




Autora:  Terezinha Rocha de Almeida


 
São noites os dias
em que vivem muitos homens,
muitos deles com foice,
outros tantos com enxadas,
sol a pino segam a terra,
a vida e o destino dos seus filhos
subjugados aos senhores feudais.

Planam a vida, cortam a cana,
e do açúcar fazem a fortuna
dos que são donos dos canaviais.

Cavam as covas nas quais
não plantam rosas,
plantam os filhotes ceifados
em mãos descomunais.

E de tanto plantar a velha terra,
e de cavarem tanto novas covas,
hão de fazer da terra um novo mundo,
com poucas covas,
mas com muitas rosas,
e muita luz para a noite afugentar.

PAI E FILHA



Autora:  Terezinha Rocha de Almeida


Pelas alamedas de Brasília, caminhavam pai e filha. O que faziam àquelas horas do dia? A filha era uma menina dos seus quatro anos. Talvez tivesse mais que isso, pois filho de pobre geralmente é raquítico e parece ter uma idade sempre menor que a verdadeira.
A menina vestia um casaco com capuz muito pequeno para seu tamanho. A peça deixava suas vestimentas íntimas à mostra. Provavelmente havia sido doado por alguém menor que ela. O casaco era branco, encardido e felpudo. A criança calçava sandálias e estava de costas para minha janela. Não pude ver-lhe a face. Como seria seu rosto? A magia estava nas suas costas.
Tinha um ar inquisitivo, uma postura displicente e caminhava de mãos dadas com o pai. De vez em quando balançava, descontraidamente, uma perninha magra. Fazia frio. O pai, um sujeito baixo e moreno, vestia jaqueta jeans e bermuda clara, acima dos joelhos. Na cabeça, usava um gorro amarelo.
O que fariam os dois àquelas horas do dia?
O pai segurava a mão da filha, balançando de vez em quando. Investigava alguma coisa, farejava procurando algo. Observava com precisão e assuntava. Estaria procurando comida? Uma área para montar um barraco ou alguma outra coisa de interesse dos dois?
A menina compenetrada imitava a mímica do pai e não só demonstrava cumplicidade, como revelava o mesmo interesse e compreensão do adulto.
Encontrávamo-nos no natal. As lojas estavam cobertas de motivos da época. A cidade se revestia de novo. Os dois contrastavam com a felicidade e a beleza do ambiente. Eram figurinhas insignificantes, perdidas num verde exuberante de uma cidade conhecida pelo poder e pela grandeza.
Depois de perscrutarem durante longo tempo, algo indecifrável foi concluído. O pai continuou apertando a mão da pequena e sumiram em meio às vitrines da quadra comercial
            Na janela do sexto andar, da quadra 205 Sul, eu ficara me interrogando acerca de tão estranha visita e sondava sobre o abismo existente entre as duas criaturas e a requintada cidade.

MEMÓRIAS DAS LETRAS E DOS SONS




Autora:  Terezinha Rocha de Almeida



Vem. Vem recitar para mim o Augusto.

“Vês, ninguém assistiu ao enterro
da tua última quimera”,
ou me trazes Manoel Bandeira perguntando:
“Meu avô, Totônio Rodrigues, Rosa...
Onde estão todos eles?”
“Estão dormindo, dormindo profundamente”.

Depois lês para mim as memórias de Pedro Nava.
Suas dores, suas angústias, sua solidão.

Também poderás ler para mim o capítulo de Vidas Secas,
onde morreu a cachorra Baleia,
último livro compartilhado com meu pai.
− Senti pela cachorra, como se ela fosse gente.

Canta um pouquinho de Asa Branca,
Assum Preto e Légua Tirana...
ou me despertas a alma, como me acordava meu pai:
“Acorda Maria Bonita,
levanta e vem fazer o café,
que o dia já vem raiando
e a polícia já está de pé.”

Podes cantar igual ao meu irmão Cícero:
“Xô, xô, xô, casaca-de-couro,
cantando as duas na telha,
cantando as duas na telha.”

Ou como a minha avó materna:
“onde tu vais caiador tão depressa assim?
“Eu vou caiar com flores lá no meu jardim.”

Quando éramos menina
minha irmã Marilúcia me entristecia a alma cantando assim:
“Dominique, Nique, Nique,
sempre alegre a cantar,
alguém que possa amar.”

E o Luiz Arthur cantava melancólico, La Belle d’ Jour:
“Eu canto a moça bonita da praia de Boa Viagem”.

− Se me trouxeres quatro conchinhas do mar
me levarás aos braços do meu pai
e correrei com a minha irmã Ângela
em nosso encantado quintal, cantando Angelita:
“Angelita, eu não posso esquecer Angelita.
Angelita, o seu nome há de ser Angelita. Angelita...”

“As águas de março” descerão no rego da rua
e eu junto ao Paulo, colocarei barquinhos de papel em seu leito,
buscando a felicidade.

O verão já havia chegado. A vida era pura luz naqueles anos.

Trazes-me a Nanã quando cantava louvando Padin Ciço:
“Meu padrinho fez uma viagem e deixou o Juazeiro Sozinho.”

Depois trazes o meu sabonete Eucalol,
a minha colônia Matinal e deixa-me beber um gole de guaraná Caçula.

Ficarei perfumada e com a alma adocicada pelas melodias,
o aroma e o doce do meu mundo arruinado
e ainda assim belo e encantado.

Dá-me para comer um pirão cozido,
um bolinho de bacia,
uma brasileira ou um pedaço de bolo de mandioca.
E me presenteias com um cravo encarnado e
para o azul não ficar com ciúmes
me dás um pouco da água do nosso mar.

Se quiseres me amansar a alma,
recordas um pouco o sermão do padre Salomão:
“Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos:
Amarás ao próximo, como a ti mesmo.”

E para me alegrares,
dança para mim um forró ou um pastoril.
Se puderes tocar na sanfona
me levas à Florbela Espanca cantando “Fumos”
e afagarás o meu coração.

Quando terminares,
rodas o Bolero de Ravel que o Clodoval sempre me pôs a ouvir.

Saudarás a lua, cantando a música da minha mãe:
“Lua bonita, se tu não fosses casada,
eu construía uma escada,
ia no céu te buscar.”

Meu coração pesa, meus olhos quedam, tenho sono.
Lês para mim o Epílogo de ROSA DE STALINGRADO,
livro que o meu filho Pablo me deu de presente de aniversário.

Rosa, a heroína russa da Segunda Guerra Mundial.

Rosa piloto de avião,
mulher valente,
tão diferente de mim
que como outras aves de vôos rasantes,
vivo voando rente às areias,
aspirando a imensidão do infinito,
a liberdade dos astros errantes,
do amor a profundidade,
das galáxias a amplidão.