quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

ONDE ESTÁ O NOSSO IRMÃO ?*

Autora : Terezinha Rocha de Almeida


Começamos a procurá-lo no silêncio,
na escuridão que eles fizeram
para que não achássemos se corpo.

Hoje estamos tão próximos de ti
que sentimos o cheiro do teu sangue,
do sangue que eles derramara
a fim de saciar-lhes a sede , matar-lhe a fome.

E o teu corpo nos espera para que todos, juntos,
preparemos o teu leito na terra,
a terra que é nossa, acariciada pelas mãos de João,
regada com o choro de Maria,
fecundada com o nosso sangue
que dará para o teu florescer, para o teu ressurgir
e para a tua nova vida.

Nossos irmãos do campo ainda dormem e não sabem de ti,
visam a foice para cortar a cana
e adoçar a vida dos “senhores”.
Os “senhores “ lhes escondem tudo...

Ma dia virá em que as foices serão erguidas
e usadas contra os homens hienas
que rondam nas trevas à procura de inocentes.

Os outros, lá da fábrica,
estão tão preocupados com o pão de seus filhos
que também não souberam de ti, mas eles te amam.
Não se sabe o que farão quando derem pela tua falta.

E avançaremos na busca gritando os teus nomes:

Jaime de Amorim!
Gastone Beltrão!
Odijas Carvalho!
Ana kueinski!

Até que a fera traiçoeira e sanguinária que deita sobre ti
retire o pelo manchado que te sufoca a fronte
para que, te reconhecendo, cheguemos a ti.

Ela fugirá como fogem as trevas do dia,
Temerá nossa vingança, pois, sabe que ela virá,
dia menos dia ela cairá sobre sua cabeça,
implacável como a morte,
que é o preço de quem nos rouba a vida.

A terra será novamente dos homens
que no seu peito mamarão
como seus filhos que são,

E eles acariciaram sua pele com as enxadas,
como se ama uma rapariga.
E haverá trabalho e justiça.

E a aurora surpreenderá os homens de mãos dadaas,
nos campos e nas ruas,
e não haverá lugar para os verdugos do povo,
os homens hienas e os senhores chacais.


________________

*        Este poema foi publicado, na época da Ditadura Militar, pelo Diretório Centra dos Estudantes  / DCE  em seu jornal BOCA DO ESTUDANTE com a participação do DAS / CAS da Universidade Federal de Alagoas / UFAL, em junho de 1979

NO SEXTO ANDAR

Autora : Terezinha Rocha de Almeida


Na verdade não sei porque estou aqui. Por que migrei? Também não sei! Encontro-me numa sala vazia, repleta de cadeiras vazias e copos vazios dispostos nos birôs.

Já não sei o que quero. A vida parece um emaranhado de problemas, de nós, de armadilhas que eu não consigo resolver.

Quando era menina, e adentrava no sítio de minha avó, embrenhava-me em meio a samambaias e emaranhados de cipoais impossíveis de desembaraçar. Hoje, passados tantos anos, a mesma sensação: imbricações, embaraços, ciladas, arapucas, labirintos, coisas do homem e da existência que a tornam difícil e dura.

Complicações. A matemática do colégio parece licor. Os primeiros amores, platônicos e irrealizáveis, são hoje como melodias suaves e adocicadas. As dúvidas da adolescência foram fardos delicados que já não pesam, nem lembram torturas.

Olhar para trás e perceber que os desafios do passado lembram acontecimentos serenos no percorrer de uma alameda cercada de árvores dadivosas, pássaros canoros e flores perfumadas.

Agora tudo é cinzento, pesado, poluído. Intricamo-nos no cipoal da vida e já não conhecemos o começo, nem o fim.

O que faço aqui, nessa sala vazia, cheia de fantasias, de funcionários públicos vencidos? Nada inspira esperança, nem vida, nem sonhos, tampouco.

E quando os sonhos se perdem que esperamos do mundo?

Meus antepassados migraram todos, perderam-se no emaranhado verde do canavial, na fumaça cinzenta dos bueiros de engenhos, das fábricas. Suas histórias ficaram misturadas às tragédias cotidianas da lavoura, às contendas dos sindicatos, às estatísticas fúnebres dos hospitais, ao obituário dos cartórios.

Apenas números. Apenas lembranças de violência, dor, doenças, heroísmos anônimos que na maioria das vezes nem chegam ao cordel.

E a gente a continuar puxando a corda de um buraco sem fundo que não nos reflete o rosto, mas sim, infinitas imagens superpostas, imprecisas, desfiguradas.

Em que ponto eu fiquei nessa multidão de seres e figuras desmanteladas, perdidas, desagregadas?

Na cor que esmaece, nos olhos que se mesclam, nos cabelos que se encrespam, no humor que se eleva ou deprime; na bondade que se esmera ou se esvai, nos perdemos na genética de nossos ancestrais.

E a história continua em ziguezague, subindo e descendo ladeiras. Alguns no topo, outros nos recôncavos e eu perdida numa estrada poeirenta sem saber a topografia do futuro. Se escarpas ou depressões, se vendavais ou calmaria. Sou um pequeno ser perdido na enxurrada da existência tentando escrever sua própria história.



FLORA

Autora : Terezinha Rocha de Almeida


Meio - dia. O verão explode em calor e luz na cidade agitada. No betume negro das ruas surgem ondas transparentes como se nuvens quentes rebentassem das entranhas da terra. As ruas estão cheias, apinhadas de gente. Nada mais natural, é dezembro, estamos próximos do natal.

O comércio fervilha de pessoas vindas de lugares os mais distantes enquanto uma criatura arrasta-se banzeira entre a multidão que desliza sob o sol. Cansada e combalida, a baba lhe escorre pelo canto da boca. A língua está de fora, a respiração ofegante e os peitos lhe pesam como chumbo. Parece que carrega o mundo no ventre. Encontra-se disforme, arredondada, inflada feito bola de soprar, porém nunca leve. Pesada, muito pesada, quase dobrada junto ao solo.

Há fêmeas que ficam bonitas na gestação, ganham graça, vigor e formas harmoniosas. Ela não! Nunca pensou que ficaria tão feia e repugnante.

A verdade é que nos últimos meses ninguém a procurava. Não sentira falta dos afagos nem das carícias. Que carícias? Isso não existia. O que ocorria mesmo era a disputa braba por seu corpo. Não porque fosse bela. A facilidade de tê-la e a necessidade de seus pretendentes é que os impulsionavam até ela.

Matilha sedenta por sexo, a libido fora de controle, atiravam-se uns contra os outros, desesperados, e contra ela em busca da saciedade de uma fome implacável. Felizmente estava livre daqueles transtornos nos últimos meses. Parecia que não existia para ninguém. Todos a ignoravam. Apenas os rapazes da lanchonete da esquina do Cais José Mariano e daquele hotel cor-de-rosa da rua da Aurora lhe acalmavam a fome e a sede nas horas de necessidade. Precisava chegar até eles naquele momento de desatino. Quem sabe lhe ajudariam? O chão estava muito quente, o mormaço lhe tirava o fôlego e a atmosfera abafada parecia querer sufocar todas as criaturas.

Penosamente, chegou próximo a um restaurante. Uma árvore frondosa e aconchegante a convidava para um repouso. Avidamente se aproximou da sombra, porém recebeu um pontapé inesperado. O homem gordo de cara sebenta e suada lhe acertou em cheio o flanco direito. Sentiu o mundo rodar, quase perdeu o equilíbrio, uma dor aguda veio somar-se às cólicas que lhe atormentavam desde as primeiras horas do dia.

Retornou a caminhar instantaneamente. Encontrava-se meio desorientada. Perdera a noção de espaço e já não sabia para que lado mesmo ficava o hotel cor-de-rosa. A fome, o cansaço e a dor misturada lhe deixavam naquele estado de inércia. Depois, vinham a sede e o calor que não poupavam vivente algum naquela época do ano.

De repente, um filete de água é visualizado próximo ao meio-fio da rua. Por que não deitar ali, e rolar o corpo junto com a água que passava cristalina pelo asfalto negro?

 O suor embebia-lhe o corpo, descia tetas abaixo. Sim, era preciso mergulhar na água, deixar aquela frescura invadir-lhe o ser. Porém, o som estridente da buzina de um carro a empurrou para a calçada ao lado. O esforço roubou-lhe mais energia. Parou cansada por um instante em meio a multidão. Sacolas e corpos resvalavam sobre o seu, quase lhe arrastando. Levantou-se devagarzinho e continuou a caminhada.

O céu muito azul misturava-se à claridade do dia radiante. Como era belo aquele dia e quanta luz a invadir as ruas. Estas, coalhadas de gente e de trambolhos, efervesciam de sons e movimentos. Mulheres falavam alto, pessoas sorriam, carros buzinavam. Os pregões conhecidos perdiam-se no ar. Ambulantes tentavam desesperadamente vender seus produtos em meio à multidão tumultuada. Um inferno!

Crianças furtavam pequenos objetos de um desatento camelô. Pega o ladrão! Gritava um homem barbudo enquanto corria atrás do menino que deslizava como felino em direção as águas do Capibaribe.

Ágil, o garoto pulou a muralha protetora, alcançou o mangue, embreando-se no lamaçal. Atarantado, o homem ficou com as mãos na cintura observando a proeza do pequeno infrator. Vencido pela habilidade do moleque, coçou a cabeça e, resignado, voltou a seu trabalho.

O martírio de Flora continuava. Passara pela rua do Hospício, reconhecera pelas livrarias. Estava perto ou longe da lanchonete e do hotel? Para que lados ficaram seus abrigos salvadores? Já não agüentava mais capengar, perambulando pelas ruas afora, sem um prumo. Teria que parar ali mesmo, em qualquer lugar e esperar o que Deus quisesse. Haveria de se sair bem, de algum modo. Pior do que estava passando não poderia acontecer.

Já havia passado por tanta coisa ruim na vida que estava preparada para o que desse e viesse.Vida de cachorro, de sim! De cachorro vira-lata, “sem eira nem beira, nem ramo de figueira”. Vida de cachorra é ainda pior. Parou, olhou o mundo à sua volta. Os olhos mortiços e castanhos já não possuíam o brilho de antes. Estavam embaçados pelo cansaço.

A multidão passava sôfrega, ansiosa, indiferente. Necessário comprar. Entrar em todas as lojas, comparar preços, artigos. Um segundo era importante na empreitada que realizava.

Uma nódoa cor-de-rosa surge ao longe. Abriu e fechou os olhos para ver se estava enxergando bem. A mancha rosada se aproximava e tornava-se mais nítida. Comprida, esbelta, avançava para o céu como uma árvore espigada. Seria verdade? Seria acolhida por alguma boa alma, como nos velhos tempos? Há muito não aparecia por ali, talvez já tivessem lhe esquecido, não lhe reconhecessem mais.

Não se tratava apenas de uma mancha, era um volume enorme muito rosado, comprido e longo. Era um prédio, sim. Era o hotel da rua da Aurora.

Exausta, deitou-se em pleno sol sob a calçada escaldante. Vultos minúsculos se aproximaram. As camisas brancas surgiam atrás da cortina enevoada que frente aos olhos dificultava-lhe a visão.

Duas mãos imensas e disformes aproximaram uma bacia à sua boca. Enfim, água. Água fresca para aplacar-lhe a sede. Outras duas lhe acariciavam o pelo. Os dois porteiros do hotel debruçavam-se sobre seu corpo. Não, não se enganara. Homens bons ainda existiam. Reconheceram-lhe e foram-lhe em socorro. Um dos homens carregou-lhe para sombra, enquanto o outro tomava da bacia com água para deixar-lhe próxima à boca.

O corpo deitado de lado deixava ver a carreira de tetas túrgidas e ingurgitadas. A respiração ofegante era visível ao longe. Chegara na hora certa. O futuro era incerto, porém, quatro olhos lhe velavam e quatro mãos lhe sustentavam e lhe afagavam. Dois homens estavam ao seu lado e, por certo, saberiam o que fazer com ela.

A solidariedade é sábia, sabe dividir partículas indivisíveis, aumentar o volume de corpos e multiplicar insignificantes miudezas. Estava feliz. Ao seu lado a presença de dois homens era de uma grandeza incalculável.


MINHA NOITE

Autora : Terezinha Rocha de Almeida


A noite chegou.
Migraram os vaga-lumes,
As estrelas minguaram,
As labaredas do fogo sumiram,
E os candeeiros apagaram-se.
 
A noite caiu pesada como chusmas de chumbo.
Engalfinhou-me tal serpente sutil sufocando-me o peito.
A noite chegou medonha,
Enforcando-me como condenada.

Encolho-me medrosa frente á desgraça de minha espécie.
A noite está carregada de saudades e nostalgia
E de medo
E de tristeza pela sina da humanidade.

Um desconforto, um aperto no peito.
E a violência a grassar nas cidades .