sábado, 19 de novembro de 2011

MEMÓRIAS DAS LETRAS E DOS SONS




Autora:  Terezinha Rocha de Almeida



Vem. Vem recitar para mim o Augusto.

“Vês, ninguém assistiu ao enterro
da tua última quimera”,
ou me trazes Manoel Bandeira perguntando:
“Meu avô, Totônio Rodrigues, Rosa...
Onde estão todos eles?”
“Estão dormindo, dormindo profundamente”.

Depois lês para mim as memórias de Pedro Nava.
Suas dores, suas angústias, sua solidão.

Também poderás ler para mim o capítulo de Vidas Secas,
onde morreu a cachorra Baleia,
último livro compartilhado com meu pai.
− Senti pela cachorra, como se ela fosse gente.

Canta um pouquinho de Asa Branca,
Assum Preto e Légua Tirana...
ou me despertas a alma, como me acordava meu pai:
“Acorda Maria Bonita,
levanta e vem fazer o café,
que o dia já vem raiando
e a polícia já está de pé.”

Podes cantar igual ao meu irmão Cícero:
“Xô, xô, xô, casaca-de-couro,
cantando as duas na telha,
cantando as duas na telha.”

Ou como a minha avó materna:
“onde tu vais caiador tão depressa assim?
“Eu vou caiar com flores lá no meu jardim.”

Quando éramos menina
minha irmã Marilúcia me entristecia a alma cantando assim:
“Dominique, Nique, Nique,
sempre alegre a cantar,
alguém que possa amar.”

E o Luiz Arthur cantava melancólico, La Belle d’ Jour:
“Eu canto a moça bonita da praia de Boa Viagem”.

− Se me trouxeres quatro conchinhas do mar
me levarás aos braços do meu pai
e correrei com a minha irmã Ângela
em nosso encantado quintal, cantando Angelita:
“Angelita, eu não posso esquecer Angelita.
Angelita, o seu nome há de ser Angelita. Angelita...”

“As águas de março” descerão no rego da rua
e eu junto ao Paulo, colocarei barquinhos de papel em seu leito,
buscando a felicidade.

O verão já havia chegado. A vida era pura luz naqueles anos.

Trazes-me a Nanã quando cantava louvando Padin Ciço:
“Meu padrinho fez uma viagem e deixou o Juazeiro Sozinho.”

Depois trazes o meu sabonete Eucalol,
a minha colônia Matinal e deixa-me beber um gole de guaraná Caçula.

Ficarei perfumada e com a alma adocicada pelas melodias,
o aroma e o doce do meu mundo arruinado
e ainda assim belo e encantado.

Dá-me para comer um pirão cozido,
um bolinho de bacia,
uma brasileira ou um pedaço de bolo de mandioca.
E me presenteias com um cravo encarnado e
para o azul não ficar com ciúmes
me dás um pouco da água do nosso mar.

Se quiseres me amansar a alma,
recordas um pouco o sermão do padre Salomão:
“Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos:
Amarás ao próximo, como a ti mesmo.”

E para me alegrares,
dança para mim um forró ou um pastoril.
Se puderes tocar na sanfona
me levas à Florbela Espanca cantando “Fumos”
e afagarás o meu coração.

Quando terminares,
rodas o Bolero de Ravel que o Clodoval sempre me pôs a ouvir.

Saudarás a lua, cantando a música da minha mãe:
“Lua bonita, se tu não fosses casada,
eu construía uma escada,
ia no céu te buscar.”

Meu coração pesa, meus olhos quedam, tenho sono.
Lês para mim o Epílogo de ROSA DE STALINGRADO,
livro que o meu filho Pablo me deu de presente de aniversário.

Rosa, a heroína russa da Segunda Guerra Mundial.

Rosa piloto de avião,
mulher valente,
tão diferente de mim
que como outras aves de vôos rasantes,
vivo voando rente às areias,
aspirando a imensidão do infinito,
a liberdade dos astros errantes,
do amor a profundidade,
das galáxias a amplidão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário