quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

FLORA

Autora : Terezinha Rocha de Almeida


Meio - dia. O verão explode em calor e luz na cidade agitada. No betume negro das ruas surgem ondas transparentes como se nuvens quentes rebentassem das entranhas da terra. As ruas estão cheias, apinhadas de gente. Nada mais natural, é dezembro, estamos próximos do natal.

O comércio fervilha de pessoas vindas de lugares os mais distantes enquanto uma criatura arrasta-se banzeira entre a multidão que desliza sob o sol. Cansada e combalida, a baba lhe escorre pelo canto da boca. A língua está de fora, a respiração ofegante e os peitos lhe pesam como chumbo. Parece que carrega o mundo no ventre. Encontra-se disforme, arredondada, inflada feito bola de soprar, porém nunca leve. Pesada, muito pesada, quase dobrada junto ao solo.

Há fêmeas que ficam bonitas na gestação, ganham graça, vigor e formas harmoniosas. Ela não! Nunca pensou que ficaria tão feia e repugnante.

A verdade é que nos últimos meses ninguém a procurava. Não sentira falta dos afagos nem das carícias. Que carícias? Isso não existia. O que ocorria mesmo era a disputa braba por seu corpo. Não porque fosse bela. A facilidade de tê-la e a necessidade de seus pretendentes é que os impulsionavam até ela.

Matilha sedenta por sexo, a libido fora de controle, atiravam-se uns contra os outros, desesperados, e contra ela em busca da saciedade de uma fome implacável. Felizmente estava livre daqueles transtornos nos últimos meses. Parecia que não existia para ninguém. Todos a ignoravam. Apenas os rapazes da lanchonete da esquina do Cais José Mariano e daquele hotel cor-de-rosa da rua da Aurora lhe acalmavam a fome e a sede nas horas de necessidade. Precisava chegar até eles naquele momento de desatino. Quem sabe lhe ajudariam? O chão estava muito quente, o mormaço lhe tirava o fôlego e a atmosfera abafada parecia querer sufocar todas as criaturas.

Penosamente, chegou próximo a um restaurante. Uma árvore frondosa e aconchegante a convidava para um repouso. Avidamente se aproximou da sombra, porém recebeu um pontapé inesperado. O homem gordo de cara sebenta e suada lhe acertou em cheio o flanco direito. Sentiu o mundo rodar, quase perdeu o equilíbrio, uma dor aguda veio somar-se às cólicas que lhe atormentavam desde as primeiras horas do dia.

Retornou a caminhar instantaneamente. Encontrava-se meio desorientada. Perdera a noção de espaço e já não sabia para que lado mesmo ficava o hotel cor-de-rosa. A fome, o cansaço e a dor misturada lhe deixavam naquele estado de inércia. Depois, vinham a sede e o calor que não poupavam vivente algum naquela época do ano.

De repente, um filete de água é visualizado próximo ao meio-fio da rua. Por que não deitar ali, e rolar o corpo junto com a água que passava cristalina pelo asfalto negro?

 O suor embebia-lhe o corpo, descia tetas abaixo. Sim, era preciso mergulhar na água, deixar aquela frescura invadir-lhe o ser. Porém, o som estridente da buzina de um carro a empurrou para a calçada ao lado. O esforço roubou-lhe mais energia. Parou cansada por um instante em meio a multidão. Sacolas e corpos resvalavam sobre o seu, quase lhe arrastando. Levantou-se devagarzinho e continuou a caminhada.

O céu muito azul misturava-se à claridade do dia radiante. Como era belo aquele dia e quanta luz a invadir as ruas. Estas, coalhadas de gente e de trambolhos, efervesciam de sons e movimentos. Mulheres falavam alto, pessoas sorriam, carros buzinavam. Os pregões conhecidos perdiam-se no ar. Ambulantes tentavam desesperadamente vender seus produtos em meio à multidão tumultuada. Um inferno!

Crianças furtavam pequenos objetos de um desatento camelô. Pega o ladrão! Gritava um homem barbudo enquanto corria atrás do menino que deslizava como felino em direção as águas do Capibaribe.

Ágil, o garoto pulou a muralha protetora, alcançou o mangue, embreando-se no lamaçal. Atarantado, o homem ficou com as mãos na cintura observando a proeza do pequeno infrator. Vencido pela habilidade do moleque, coçou a cabeça e, resignado, voltou a seu trabalho.

O martírio de Flora continuava. Passara pela rua do Hospício, reconhecera pelas livrarias. Estava perto ou longe da lanchonete e do hotel? Para que lados ficaram seus abrigos salvadores? Já não agüentava mais capengar, perambulando pelas ruas afora, sem um prumo. Teria que parar ali mesmo, em qualquer lugar e esperar o que Deus quisesse. Haveria de se sair bem, de algum modo. Pior do que estava passando não poderia acontecer.

Já havia passado por tanta coisa ruim na vida que estava preparada para o que desse e viesse.Vida de cachorro, de sim! De cachorro vira-lata, “sem eira nem beira, nem ramo de figueira”. Vida de cachorra é ainda pior. Parou, olhou o mundo à sua volta. Os olhos mortiços e castanhos já não possuíam o brilho de antes. Estavam embaçados pelo cansaço.

A multidão passava sôfrega, ansiosa, indiferente. Necessário comprar. Entrar em todas as lojas, comparar preços, artigos. Um segundo era importante na empreitada que realizava.

Uma nódoa cor-de-rosa surge ao longe. Abriu e fechou os olhos para ver se estava enxergando bem. A mancha rosada se aproximava e tornava-se mais nítida. Comprida, esbelta, avançava para o céu como uma árvore espigada. Seria verdade? Seria acolhida por alguma boa alma, como nos velhos tempos? Há muito não aparecia por ali, talvez já tivessem lhe esquecido, não lhe reconhecessem mais.

Não se tratava apenas de uma mancha, era um volume enorme muito rosado, comprido e longo. Era um prédio, sim. Era o hotel da rua da Aurora.

Exausta, deitou-se em pleno sol sob a calçada escaldante. Vultos minúsculos se aproximaram. As camisas brancas surgiam atrás da cortina enevoada que frente aos olhos dificultava-lhe a visão.

Duas mãos imensas e disformes aproximaram uma bacia à sua boca. Enfim, água. Água fresca para aplacar-lhe a sede. Outras duas lhe acariciavam o pelo. Os dois porteiros do hotel debruçavam-se sobre seu corpo. Não, não se enganara. Homens bons ainda existiam. Reconheceram-lhe e foram-lhe em socorro. Um dos homens carregou-lhe para sombra, enquanto o outro tomava da bacia com água para deixar-lhe próxima à boca.

O corpo deitado de lado deixava ver a carreira de tetas túrgidas e ingurgitadas. A respiração ofegante era visível ao longe. Chegara na hora certa. O futuro era incerto, porém, quatro olhos lhe velavam e quatro mãos lhe sustentavam e lhe afagavam. Dois homens estavam ao seu lado e, por certo, saberiam o que fazer com ela.

A solidariedade é sábia, sabe dividir partículas indivisíveis, aumentar o volume de corpos e multiplicar insignificantes miudezas. Estava feliz. Ao seu lado a presença de dois homens era de uma grandeza incalculável.


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